Agora que já apresentamos suficientemente o fotolivro que deu origem a toda essa pesquisa é hora de encarar o desafio de explicar melhor e discutir algumas possibilidades de uso da Linguagem fotográfica.
Serão apresentados autores clássicos sobre o tema, brasileiros, estrangeiros, contemporâneos ou não tão recentes, pois afinal é assim, no diálogo entre conceitos e autores, que se propõe um olhar científico.
Antes, porém, aplicaremos algumas dessas noções teóricas ao livro O Chão de Graciliano na perspectiva da Crítica Genética, nossa base metodológica, e para isso vamos apresentar o fotolivro Fotográficos DOCUMENTOS DE PROCESSO fotográfico.
Processo não é necessariamente sequência.
Nem sempre um passo vem logo após o outro.
Processo pode ser flexível, de constantes idas e vindas.
Processo criativo ainda mais, considerando a natureza da própria criação.
Na fotografia não podia ser diferente, embora muitos fotógrafos, profissionais ou não, sintam constantemente o peso da cobrança do click certeiro, no lugar certo e no momento exato.
Em tempos de intensa produção fotográfica, principalmente digital e bastante incentivada pelo uso do celular e suas instantaneidades, o ato fotográfico ainda pode e deve ser pensado além do apertar automático de um botão, já questionado em 1859, apenas 20 anos depois do registro oficial da fotografia na França por Charles Baudelaire:
a fotografia seria “o refúgio de todos os pintores fracassados, demasiado mal-dotados ou preguiçosos para acabar seus estudos”.
Lamento, ó simbólico poeta simbolista, mas a fotografia, como expressão máxima da louca complexa e urgente-quase-instantânea sociedade das imagens merece ser compreendida de forma mais clara.
Boas fotografias não são resultado só da sorte ou técnica do fotógrafo.
Imagens fortes, de conteúdo rico e que convidam o espectador a pensar também exigem muita dedicação o reflexão do autor.
Abertura de Fotográficos DOCUMENTOS DO PROCESSO fotográfico de Marcelo Juchem (2018).
Este fotolivro pretende ser autoexplicativo já no título, embora possa parecer confuso num primeiro momento, obviamente pela repetição do fotográfico, mas é justamente disso que se trata: temos documentos de processo, da nossa já conhecida Crítica Genética, que são apresentados fotograficamente, ou seja, ilustra-se em fotos o processo criativo do autor.
E este processo, por sua vez, trata de processo criativo na fotografia, especificamente no fotolivro que analisamos. Pegou, pegou?
Trata-se, assim, de um olhar mais organizado, estruturado e sintético ao processo de criação fotográfica do autor Tiago Santana, e para uma primeira organização optou-se por dividir em três fases o ato fotográfico. Cabe lembrar que, no texto final da pesquisa científica, discutiu-se sobre o equívoco do “instante decisivo”, que centraliza demais a criação fotográfica no momento do click, desconsiderando assim etapas importantes antes e depois da captação; desculpe, Sr. Bresson.
De toda forma, a título de análise genética, os documentos de processo identificados foram categorizados em três etapas processuais, mas não obrigatoriamente sequenciais, pois é fácil entender que algumas ações foram concomitantes ou até invertidas: concepção, gestação e nascimento, com suas respectivas ações específicas. Essas, como se vê, não ocorrem unicamente na fase 1 ou 2 ou 3, podendo eventualmente ampliar sua presença para outras etapas. Trata-se, vale repetir, de uma tentativa de organização do processo criativo, sem ter a esperança de um “caminho mais correto” ou algo do tipo.
As etapas foram nomeadas a partir da gênese da obra, iniciando com a Concepção. Nesta primeira etapa, as referências foram os documentos de processo mais complexos para se ilustrar, pois são por demais abstratos e inerentes à formação estética do artista. A partir do projeto, esta obra começa a efetivamente ser reificada, e algumas escolhas técnicas já foram decididas neste momento, como questões gerais da impressão do livro final (capa dura, número de páginas, tipo de papel etc.), ou intenções visuais do artista, que já havia assumido a grande angular como linguagem fotográfica ao mesmo tempo que se obrigava a aproximar das pessoas numa relação bastante íntima entre fotógrafo e modelos. Como equipamentos, foram usadas três câmeras: Nikon FM2 com lente 28mm, Leica M6 com lente 35mm, e a câmera panorâmica Technorama 617 S III, de médio formato com lente grande angular, e como suprimentos foram usados os filmes: Kodak TriX (35mm) e Ilford HP5 (35 e 120mm), ambos PB e de ISO 400.
Na etapa de Gestação, o foco foi o momento da captação, com todas as definições inerentes ao ato fotográfico em si. Tiago já é conhecido por enquadramentos ousados, subexposição intensa, manutenção do enquadramento original, além da tranquilidade em abordar e dirigir seus modelos. Optou-se por entender o momento do click como parte da Gestação, no sentido de exigir o amadurecimento e efetivo registro da imagem nos processos posteriores, com ênfase à revelação, ou mesmo da ampliação, feita em diferentes tamanhos, formatos e suportes: ampliações simples, em tamanho 10x15cm, em papel fotográfico 18x24cm, feitas pelo próprio fotógrafo, em papel de algodão 20x30cm, feitas pela laboratorista Rosângela Andrade, para posterior escaneamento, além de ampliações panorâmicas 20x60cm, em provas de gráfica, mas que na análise ficou mais relacionada à impressão do livro.
Ao final da segunda etapa, foi pontuada a divulgação parcial dos resultados (exposição em 2003), que enquanto processo criativo também veio a influenciar nas decisões posteriores, mesmo que a exposição tenha sido bem recebida pelo público e pela crítica.
A terceira etapa, com foco no fotolivro, que foi um dos resultados finais possíveis, Nascimento, tem como uma das ações a edição, mas essa é uma das que mais flexibilidade apresenta ao longo de todo o processo. Outra vez a experiência anterior do artista como fotojornalista é importante, pois capacitou-o para identificar, já no negativo, as melhores imagens. Cabe ressaltar que, mesmo utilizando-se da fotografia analógica, Tiago Santana não tem a prática de ampliar o contato, conjunto de negativos que facilita a visualização das imagens finais, e onde muitos fotógrafos fazem novos cortes e enquadramentos, o que também não é prática do artista, que mantém o enquadramento original da imagem. Além disso, a etapa de edição foi a mais coletiva e aberta de todas, aceitando-se leituras e observações de quaisquer receptores. Do ponto de vista da Crítica Genética esperava-se ver registros e rasuras do processo criativo do artista em materiais deste tipo, mas ao se identificar que isso não faz parte do seu processo, podem ser levantadas outras considerações acerca da sua criação, mais amadurecida e consciente dos propósitos da obra.
Pilha do livro O Chão de Graciliano por Tiago Santana. Imagem por Henrique Pereira.
Ao fim, a impressão do fotolivro foi momento auge da criação deste produto, e exigiu novas técnicas de produção gráfica desenvolvidas em conjunto entre artista e profissionais da gráfica, buscando a granulação e gradientes do negativo PB, por exemplo. É válido reforçar que, do ponto de vista geneticista, o produto final é apenas uma das possibilidades, um dos caminhos traçados, embora o percurso entre a origem e o ponto (dito) final tenham sido percorridos de diferentes maneiras.
Diversos pontos chamam a atenção ao longo do trabalho, mas cabe salientar aqui a clareza e consciência que o fotógrafo demonstra de todo o processo, justificando algumas escolhas técnicas da impressão do livro, por exemplo, a partir de objetivos iniciais já alinhados desde o projeto. Outro fator importante na pesquisa foi a inexistência de rasuras do autor. Tiago Santana não é afeito a marcar excessivamente suas ampliações, negativos e materiais em geral, o que em partes dificulta a busca do pesquisador, mas por outro lado só reforça a consciência do fotógrafo sobre seu trabalho.
De tudo, esta categorização fez muito sentido aos olhos dos pesquisadores envolvidos e do próprio fotógrafo, e espera-se que este raciocínio possa ser adaptado a outros exemplos do universo da fotografia.
Foi assim que se buscou visualizar o uso da linguagem fotográfica do artista Tiago Santana. Linguagem essa que considerou tanto as aptidões e intenções do fotógrafo já no início do trabalho, bem como todas as questões técnicas e conceituais envolvidas na captação das imagens que, neste caso, considera a revelação e ampliação, finalizando com etapas mais coletivas de edição e produção do fotolivro em si. Ou seja, a linguagem do fotógrafo não foi “aplicada” unicamente no momento do click, mas já vem das suas experiências anteriores, considera o andamento do trabalho (ou seja, o processo) e outras opiniões, e, ao fim, busca reforçar os objetivos iniciais do trabalho: apresentar fotograficamente o universo do escritor Graciliano Ramos em um “livro de arte-reportagem”, como entendido pelos próprios autores.
É sobre o conceito de Linguagem fotográfica que serão abordados outros pensadores na sequência.
A fotografia, como qualquer outra atividade criadora, tem que responder a duas questões básicas que definem o conteúdo e a forma de sua produção: o que fazer e como fazer. (…) No entanto, quanto à forma, a maneira de fotografar que se busca é aquela que resulta em maior eficiência na transmissão da informação em pauta.
Milton Guran, Linguagem fotográfica e informação, 2002, p. 10
Essa citação é uma BELA maneira de iniciar um papo sobre linguagem: o que se quer transmitir (a mensagem, o conteúdo, o assunto selecionado pelo emissor, no nosso caso, o fotógrafo) e como (ou seja, de qual maneira, a partir de quais elementos, instrumentos, características e estilos), para alcançar uma comunicação eficiente.
É nesse sentido que a linguagem fotográfica é pensada aqui.
Não se trata de algo tão visível como, por exemplo, a fotometria ou um enquadramento clássico como a regra dos terços. No primeiro exemplo, espera-se que uma fotografia bem exposta tenha pontos brancos, pontos pretos e pontos médios, como bem nos ensinou Ansel Adams e seu Sistema de Zonas. Claro que dependendo da situação teremos mais pontos pretos do que brancos, ou ainda podemos criar uma foto com uma luz mais subexposta (ou seja, mais escura, como que “faltando” luz) ou uma foto superexposta (mais clara, com mais luz). Mas, em princípio, de uma boa fotometria espera-se uma medida e exposição equilibrada. Já na regra dos terços, a imagem deverá priorizar ou as linhas horizontais e verticais de cada um dos três terços, ou os pontos de ouro (intersecções entre as linhas imaginárias). Ou seja, é visível, é identificável no visual da fotografia, ou está ali, ou não está. Mas… e a linguagem fotográfica?
A linguagem fotográfica também tem a ver com fotometria e exposição, com composição e enquadramento, com definições técnicas e estéticas, e ainda vai muito além, pois de certa forma é ampla ao ponto de englobar todas as maneiras, as formas, as possibilidades que o fotógrafo tem à sua disposição até o resultado (dito) final.
Linguagem fotográfica não é o quê.
Linguagem fotográfica é como.
Um dos primeiros autores a tratar especificamente do tema aqui no Brasil foi o fotógrafo e professor Ivan Lima, que considerou o emissor (fotógrafo) e o receptor (o público), mas aprofundou os seus raciocínios sobre o segundo, focando a recepção:
O emissor se utiliza de uma linguagem fotográfica para se exprimir e o receptor faz uma leitura e uma interpretação da imagem produzida pela fotografia. (…) Como a leitura de uma fotografia pode ser aprendida e a interpretação depende do saber de cada pessoa, trataremos com muito mais ênfase da leitura de fotografias, deixando os outros indicativos da interpretação insinuados e ressaltados. (LIMA, 1988, p. 14).
A fotografia é a sua linguagem
Em outras palavras, não basta o fotógrafo expressar-se de uma forma X ou Y através da fotografia se o público não consegue identificar, ler ou decodificar aquela mensagem. Nesse caso, teríamos um ruído de comunicação, o que é ruim na fotografia e em todas as formas de comunicação.
Para discorrer sobre as diferentes interpretações dos (futuros) leitores das imagens fotográficas, Lima recorre à psicologia da Gestalt e discute forma x conteúdo. Sobre a forma, o autor destaca a composição, simetria, equilíbrios visuais, centralização e descentralização, hierarquia entre elementos visuais (vivos, móveis e fixos); linhas, pontos e planos; o contraste, que seria o elemento fotográfico mais forte, e alguns outros aspectos que se referem à visualização da mensagem fotográfica. Já do ponto de vista do conteúdo, o autor comenta brevemente o gênero do fotojornalismo ressaltando que trata-se de informar um fato ocorrido, mas também considera outras possibilidades como a fotografia de retrato e de arte.
Partindo das ideias do autor, em nossa visão a Linguagem fotográfica seria uma espécie de ponte entre a forma e o conteúdo.
Já o autor Milton Guran, também fotógrafo durante vários anos antes de se dedicar mais especificamente à produção teórica sobre fotografia, consegue ampliar a perspectiva visual da fotografia para destacar o momento de aplicação, por assim dizer, da linguagem fotográfica na prática. Ou seja, trata-se de um olhar sobre a criação da fotografia.
No seu ponto de vista, a linguagem seria constituída por elementos técnicos (pb e cor; composição; enquadramento; luz; foco, diafragma e velocidade; objetivas; filme, revelação e cópia) e por um elemento não técnico, o momento. Por um lado, tal perspectiva soa como uma nova roupagem do instante decisivo bressoniano, mas o autor considera os processos de revelação e ampliação como integrantes da linguagem fotográfica utilizada em cada imagem, ou seja, não se trata de uma única e breve ocasião na qual os elementos seriam selecionados somente pelo fotógrafo, pois existem etapas posteriores e anteriores que também interferem no conteúdo da imagem.
Ao longo da sua abordagem teórica sobre a fotografia o autor vai exemplificando como os elementos de linguagem atuariam na prática, e analisa diversas imagens fotojornalísticas. Além disso, nos leva a refletir sobre diversas questões do universo da criação fotográfica, inclusive sobre a carência de discussão sobre o assunto linguagem fotográfica:
É evidente que se trata de uma linguagem e de um processo de criação extremamente complexos, razão pela qual é enorme a distância que separa o ato de operar um equipamento fotográfico – sobretudo quando se trata das modernas câmeras automatizadas, de operação muito fácil – da utilização maximizada desta técnica por quem domine a linguagem fotográfica. Pelo menos tão grande quanto a distância existente entre a expressão de um sentimento por quem saiba apenas falar e esse mesmo sentimento expresso por um poeta, por exemplo. No entanto, a fotografia, por ter se tornado uma atividade de massa, acabou tendo o “entendimento” de seu discurso e a consequente manipulação de sua linguagem listados no rol das coisas “simples”, o que acarreta uma série de distorções, inclusive na produção do fotojornalismo e da fotografia aplicada à pesquisa, sobretudo no campo das ciências sociais.
GURAN, 2002, p. 16-17, grifos meus.
Outro autor que discute especificamente o fotojornalismo, a partir de uma abordagem histórica, é o português Jorge Pedro Sousa, que parte da história deste gênero para abordar a prática fotográfica em termos técnicos referentes a tipos de máquina, objetivas, ajustes mecânicos e acessórios. Seu livro, assim como este nosso site, também é fruto de um trabalho acadêmico desenvolvido em Portugal, e pode ser acessado livremente aqui.
Em seu livro, lançado no Brasil em 2004, é no terceiro capítulo que o autor discute a Linguagem fotográfica e apresenta alguns aspectos a serem considerados para “gerar sentido” no fotojornalismo, denominados elementos específicos de linguagem fotográfica, que são:
- texto;
- enquadramento, planos e composição;
- o foco de atenção;
- relações figura-fundo;
- equilíbrio e desequilíbrio;
- elementos morfológicos (grão, massa ou mancha, pontos, linhas, textura, padrão, cor e configuração);
- profundidade de campo;
- movimento;
- iluminação;
- lei do agrupamento;
- semelhança e contraste de conteúdos;
- relação espaço-tempo;
- processos de conotação fotográfica barthesianos (truncagem, pose, objetos, fotogenia, esteticismo e sintaxe);
- distância;
- e por fim sinalização
SOUSA, 2004, p.65-88.
Fotojornalismo: introdução à história, às técnicas e a linguagem da fotografia na imprensa
Ao final, o autor discorre sobre os gêneros específicos do fotojornalismo e finaliza com observações acerca das questões éticas relacionadas à área. Ou seja, Souza cumpre sua proposta de perspectiva histórica na obra, mas a Linguagem fotográfica, mesmo elencada, discutida e identificada na prática a partir dos “elementos específicos”, continua com vários aspectos obscuros.
Para trazer um olhar mais atual, vamos entender como Stephen Shore tenta explicar a Linguagem fotográfica a partir de referências textuais como a gramática:
Toda fotografia tem atributos em comum. Esses atributos determinam como o mundo diante da câmera se transforma numa fotografia, e também constroem a gramática visual que esclarece o significado da fotografia.
Uma fotografia pode ser vista em vários níveis. Para começar, ela é um objeto físico, uma cópia impressa. Nessa impressão, há uma imagem, a ilusão de uma janela aberta para o mundo. É nesse nível que em geral lemos uma imagem e descobrimos seu conteúdo: a recordação de um lugar exótico, o rosto de uma pessoa amada, uma pedra molhada, uma paisagem noturna.
A esse nível incorpora-se outro, que contém sinais dirigidos a nosso aparelho mental. É esse nível então que confere sentido ao que a imagem mostra e ao modo como ela se organiza (SHORE, 2014, p. 8).
A natureza das fotografias: uma introdução
Percebe-se que o autor separa a imagem fotográfica em níveis consecutivos, embora relacionados. Ou seja, a gramática visual da fotografia não seria identificada apenas no aspecto visual, mas também seria influenciada pelos – e influenciaria – níveis físico e mental. Tal perspectiva pode realmente ser adequada a qualquer imagem fotográfica, e faz ainda mais sentido em áreas como a fotografia artística, ao se conceber a foto final como objeto de arte, bem como ao fotolivro, que também se baseia em critérios físicos e concretos em seu resultado final.
Em seu olhar estruturado, Shore divide a essência fotográfica nesses três níveis:
- físico: os atributos químicos e físicos da imagem fotográfica, normalmente copiada em papel
- descritivo: aspectos formais da fotografia, que podem ser resumidos em bidimensionalidade, enquadramento, o tempo e o foco, sendo a base de uma gramática visual fotográfica
- e mental: o significado da imagem, que mesmo quando é literal acaba por não espelhar o mundo, pois elabora, refina e embeleza as percepções formais e visuais do nível descritivo.
Cada nível de uma fotografia é determinado pelos atributos do nível anterior. A cópia em papel proporciona o suporte físico para os parâmetros visuais da imagem fotográfica. As decisões formais, elas próprias um produto da natureza daquela imagem, são os instrumentos que o modelo mental utiliza para se traduzir na imagem. Cada nível proporciona a base utilizada pelo nível seguinte. Ao mesmo tempo, cada um deles retroage, ampliando o âmbito e o significado em que se apoia. O nível mental proporciona um contraponto ao tema descritivo. A imagem fotográfica transforma um pedaço de papel numa ilusão sedutora ou num momento de verdade e beleza.
SHORE, 2014, p. 100.
Quando Shore discute a fotografia a partir dos gêneros físico, descritivo e mental devemos lembrar que sua abordagem não pretende abarcar apenas as fotografias comerciais ou profissionais, muito pelo contrário, ele enfatiza que tais níveis servem a qualquer fotografia.
Assim, é chegado o momento quando você leitor é convidado a refletir a partir destes aspectos nas suas próprias fotografias: quais têm sido suas opções do nível físico? E as do nível descrito? E mental? E como eles interagem entre si? Quais são as potencialidades de cada um? O que você tem a aproveitar mais e mais?
A partir desses questionamentos, podemos ter mais clareza e consciência do que está à nossa disposição enquanto fotógrafos e, assim, utilizar tais instrumentos e recursos de uma maneira mais eficiente, como já disse Shore:
A gênese do nível mental está na forma como o fotógrafo organiza mentalmente a fotografia. Ao fazerem fotos, os fotógrafos recorrem a modelos mentais, que são resultados dos estímulos de intuição, de condicionamento e do modo de ver o mundo. (…)
Para a maioria dos fotógrafos, o modelo atua de modo inconsciente. Contudo, se o fotógrafo o torna consciente, ele o submete a seu controle e também passa a controlar o nível mental da fotografia (SHORE, 2014, p. 117).
Em alguns casos práticos, como na publicidade, o fotógrafo deve ter muita consciência sobre suas intenções, considerando que estas deverão estar à disposição do cliente, em outros gêneros da fotografia isso nem sempre acontece. Embora a fotografia já tenha alcançado o status de expressão artística, em diversos casos cabe o questionamento sobre a real clareza que tem (ou não) o fotógrafo em relação aos seus objetivos. Essa é uma questão que pode direcionar toda a preocupação com a Linguagem fotográfica. Assim, nos usos amadores, a possibilidade de confusão das intenções e controles do fotógrafo fica ainda mais evidente, pois muitas vezes é o aspecto unicamente visual que convida ao fazer fotográfico, o que não vem a ser exatamente um problema na aplicação doméstica ou amadora, mas pode ser lamentável no âmbito profissional ou mais reflexivo.
De toda forma, ao conhecer um pouco mais as obras citadas aqui, pode-se ver que alguns conceitos são bastante semelhantes nas diferentes perspectivas teóricas sobre Linguagem fotográfica, o que é bastante saudável ao diálogo e reflexão sobre o assunto.
Por outro lado, cabe a nós, fotógrafos, entendermos da melhor maneira tais raciocínios e reflexões para colocarmos, na prática, de forma cada vez mais eficiente, nossa Linguagem fotográfica. Ou seja, com quais intenções estamos utilizando recursos como o foco e a luz? Em que interfere o filme (ou a configuração da câmera digital, pra facilitar nosso raciocínio) na foto e na mensagem final? Uma foto PB é apenas uma foto colorida sem saturação, ou isso modifica o conteúdo da foto? E a foto final, como eu estou entregando: só digital, impressa em papel fotográfico ou ampliada a capricho, emoldurada etc.?
Ao encararmos questões como estas, conseguimos refletir sobre nosso próprio uso de Linguagem fotográfica, ou seja, como estamos nos expressando através da fotografia.
Como apresentamos no início deste capítulo, na análise do fotolivro O Chão de Graciliano percebemos que diversas decisões anteriores à captação direcionaram o trabalho ao longo de toda sua construção, com pequenas variações. Também no momento do click, várias decisões exigiram uma captação diferenciada, como as escolhas de equipamento e suprimento. E o mesmo ocorreu em etapas posteriores, com definições de revelação e ampliação, da edição, de definições técnicas do fotolivro…. Tudo isso foi decidido e amadurecido ao longo de todo o processo de criação, e, assim, a Linguagem fotográfica deste trabalho foi sendo aplicada. Ou seja, Linguagem fotográfica não é o que, mas como.
No quadro abaixo, temos um breve resumo do que foi apresentado a partir dos autores e conceitos teóricos de Linguagem fotográfica até aqui, e o leitor está convidado a refletir sobre a sua própria produção, bem como sobre a produção de autores que conhece e admira:
Como se viu, os autores apresentados não trazem conceitos claros de Linguagem fotográfica, mas listagens de elementos constitutivos da linguagem, o que, embora úteis, não esgotam a discussão.
Assim, ver tais raciocínios resumidos e colocados lado a lado faz com que sejam percebidas semelhanças e diferenças, o que convida ainda mais ao diálogo e à reflexão sobre o assunto. Em nossas leituras e escritas, num primeiro momento chamou a atenção que grande parte das abordagens, ao contrário do imaginado, tenta refletir sobre a linguagem do ponto de vista da criação do fotógrafo, mas temos também outros olhares que vão focalizar o receptor, ou seja, o público das fotografias. Dessa forma, na prática todo mundo é importante.