Nascido e criado no interior do Ceará, Tiago Santana (1966, Crato/CE) teve contato íntimo com a cultura nordestina e com certeza isso moldou seu olhar pro mundo. Passou a infância na região de Juazeiro do Norte percebendo todo o tipo de manifestação artística e popular, com ênfase aos temas religiosos e à figura do Padre Cícero. Em suas próprias palavras, “Juazeiro é um pouco uma síntese do Brasil”.
Desde aquela época, sua família era ligada à política e grande incentivadora da arte e da cultura. Tiago carrega, deste tempo, a presença constante de livros e suas relações atuais com edição de livros, publicações dos seus trabalhos fotográficos em fotolivros e mesmo a origem da sua editora Tempo d’Imagem, lançada em 1994 e ativa até hoje. Por outro lado, Tiago não tem lembrança do seu primeiro contato com a literatura de Graciliano Ramos, mas afirma que era leitura obrigatória nas escolas e que, em geral, as pessoas conheciam, além de ter tido contato com apresentações teatrais baseadas na obra do velho Graça.
Esse breve relato inicial nos faz lembrar e reforçar a impossibilidade de encontrar certas origens criativas, concordando com Salles (2008, p. 60-1):
“Enfim, estamos diante do mito do ponto originário. É impossível determinar a origem daquela obra, por estarmos, artista e crítico, sempre no meio da cadeia criativa.”
Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística
Os primeiros contatos de Tiago Santana com a fotografia profissional foram no início dos estudos universitários de engenharia, nunca finalizados. O ambiente acadêmico era rico e ele foi abrindo seus olhos para a fotografia através de estudos autodidatas, como é recorrente em fotógrafos da sua geração, e participando de eventos da fotografia da época. No final dos anos 80, Tiago teve uma breve experiência pelo fotojornalismo, mas logo enveredou pelo caminho das produções autorais, com mais tempo e maior aprofundamento, tendo como primeira grande obra fotográfica o livro Benditos, realizado entre 1992 e 2000, e que aborda o universo de Juazeiro e dos devotos de Padre Cícero. Já neste trabalho deu-se a escolha por equipamentos que exigissem a aproximação das pessoas, com lente fotográfica grande angular de 28 milímetros. Cabe também ressaltar que até hoje o fotógrafo utiliza a tecnologia analógica, preferindo filmes de sensibilidade ISO 400, que garantem boa exposição nas altas e nas baixas luzes (claro e escuro) e são conhecidos por uma granulação peculiar, como o Kodak TriX e Ilford HP5. Além da sua breve trajetória como fotojornalista, Santana carrega o domínio técnico dos processos de revelação e ampliação. Então, sempre que possível, encarrega-se ele mesmo por estas etapas do processo.
Câmera fotográfica analógica com filmes fotográficos. Imagem por ulises varela licenciada por Unsplash.
A partir de Benditos veio o convite do jornalista Audálio Dantas para realizar em conjunto um trabalho sobre o escritor Graciliano Ramos. Não se tratava, desde o início, de ilustrar seus textos ou produzir uma fotobiografia, mas em inspirações livres para apresentar fotograficamente o universo do velho Graça. Inicialmente pensado para uma exposição que ocorreu em 2003, o trabalho tomou corpo e Santana acabou desenvolvendo o fotolivro O Chão de Graciliano, entre 2002 e 2006. Para a exposição, foram feitas duas viagens de campo, uma entre ambos e a outra Tiago viajou sozinho para fotografar. Na sequência, foram feitas mais três ou quatro viagens juntos, com diferentes tempos de duração.
Foi genial viajar com ele e aprender mais sobre o Graciliano. Claro que eu já tinha lido alguns livros do Graciliano. É uma literatura quase obrigatória, Vidas Secas e tal. (…) Voltei a ler os livros de novo. E teve um livro que eu li especialmente, chamado Infância, do Graciliano. Este livro pra mim foi o meu livro de cabeceira. (…) Eu não sou nenhum especialista em Graciliano, nem me considero. O Audálio, sim, é um cara que pesquisou e escreveu. Eu sou um mero curioso da obra, mas aprendi muito com Audálio.
Entrevista concedida por Tiago Santana em 2016.
O fotolivro foi desenvolvido desde o início de forma relativamente coletiva, como é comum nos trabalhos do Tiago, e complexifica ainda mais o processo, com participação principal dos seguintes sujeitos: Isabel Santana, irmã do fotógrafo, foi a produtora e responsável pelo projeto cultural (o trabalho foi financiado por Lei de Incentivo à Cultura) e colaborou na edição das imagens; os filmes foram revelados e ampliados em partes por Tiago e em partes por Rosangela Andrade, figura conhecida da fotografia analógica em todo o Brasil, a partir dos exemplos e instruções do fotógrafo; a edição foi feita a várias mãos, Audálio, inclusive, sendo impossível precisar quem exatamente contribuiu, mas a decisão final sempre coube ao Tiago; Ricardo Tilkian foi o editor responsável pelos escaneamentos e tratamentos de imagem; Ana Soter foi a diagramadora do livro; e a equipe da Gráfica Ipsis, especializada em livros de fotografia, foi a responsável pela impressão, inclusive dando início a um processo inédito de impressão atualmente denominado full black, no qual imagens PB são impressas a partir do uso de três ou mais tintas pretas, buscando gradientes de cinza que se aproximem da granulação do filme PB.
A estrutura do livro obedece à seguinte lógica: textos iniciais dos apoiadores, seguidos do texto de apresentação do jornalista Joel Silveira Duas viagens, e, fechando a primeira parte, a apresentação do jornalista e escritor Audálio Dantas, O chão revisitado. Esses textos são mesclados com quatro fotos panorâmicas, em página dupla, e a partir da página 38 até a 157 temos 70 outras fotos. Ao fim do livro, breves páginas com entrevista de Graciliano Ramos a Joel Silveira, datada de 1939, e a cronologia do escritor, além de traduções (inglês e espanhol) foram anexadas nas últimas 24 páginas impressas em papel diferenciado. Tanto os textos e informações biográficas do escritor quanto aspectos técnicos de impressão já estavam previstos no projeto cultural aprovado para financiamento via Lei de Incentivo à Cultura, e foram devidamente seguidos.
Tecnicamente, o livro final tem 200 páginas em tamanho 29,5 x 23cm (fechado) e em 58 x 23 cm (aberto), ou seja, um formato bastante horizontalizado, que valoriza as fotos panorâmicas. O miolo da publicação foi feito em Couchê fosco 170g (BVS Plus Mate branco, marca Scheufelen) e impresso em 3×3 cores, sendo duas cores e um verniz, o que foi bastante inovador para a época. O livro conta ainda com capa dura, guardas em papel Color Plus 180g a 4×0 cores e revestimento de sobrecapa em Couchê brilho 150g com laminação fosca a 4×0 cores, teve tiragem inicial de 4.000 exemplares e atualmente está esgotado.
Algumas das palavras do jornalista Joel Silveira no texto de apresentação são bastante esclarecedoras:
Em 2003, com projeto e curadoria de Audálio Dantas, foi montada no Sesc Pompéia, em São Paulo, a maior exposição já realizada sobre a vida e a obra de Graciliano. Reuniu documentos e imagens dos acervos do IEB – Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo e do Museu Casa de Graciliano Ramos, de Palmeira dos Índios, acervos que pertenceram a Heloísa Ramos.
O título da exposição, e agora deste livro, sintetiza o espaço e o tempo de Graciliano em sua terra. Há documentos importantes, como as anotações que o escritor fez em sua viagem à antiga União Soviética e à Checoslováquia, no início dos anos 50, juntam-se imagens antigas e recentes, como as que haviam sido colhidas no verão de 2002, por Tiago Santana, um jovem caçador de luz já experimentado nos caminhos do sertão.
Cearense do Crato, Tiago testemunhou, desde menino, a passagem das grandes levas de romeiros que vinham do Nordeste inteiro buscar milagres em Juazeiro, onde vivera por longos anos o padre Cícero, feito santo pelo povo. Um dia, munido de sua câmera fotográfica, o menino fez-se romeiro também, percorreu com eles os muitos caminhos que levam a Juazeiro, e ao longo deles compôs, em luz cortante e sombras profundas, não um documentário sobre as romarias, mas quadros preciosos da religiosidade sertaneja.
Essas imagens seriam reunidas num belo livro de arte, em 2001, sob o título de Benditos, lançado no mesmo ano, simultaneamente com uma exposição, no Sesc Pompéia. O ensaio fotográfico remetia a um dos ciclos mais ricos do cordel – o da religiosidade do povo do sertão e a figura de seu padroeiro, o padre Cícero Romão Batista.
Deu-se, aí, o encontro de Tiago Santana com Audálio Dantas. A exposição das fotos enriquecia outra, 100 anos de cordel, concebida por Audálio, que contava a história da literatura popular em versos a partir das primeiras impressões e comercialização dos livrinhos de cordel do Brasil, no final do século XIX e início do século XX.
O mesmo aconteceria com o ensaio feito para a exposição sobre Graciliano Ramos, agora acrescido de novas imagens reunidas neste livro. O chão percorrido pelo fotógrafo é o mesmo sobre o qual Graciliano construiu a sua literatura, mas não é a paisagem, quase sempre dura e seca, que Tiago recolhe em sua câmera; o que ele registra é o homem que nela vive, sobrevive ou dela se retira quando de todo perde a esperança – eterno Fabiano.
Como Graciliano, o fotógrafo testemunha sobre o homem. A paisagem é mero pano de fundo. Vale repetir aqui o que escreveu Antonio Candido sobre a criação literária de Graciliano Ramos: “…no âmago de sua arte, há um desejo intenso de testemunhar sobre o homem, e tanto os personagens criados quanto, em seguida, ele próprio são projeções deste impulso fundamental, que constitui a unidade profunda de seus livros”.
Joel Silveira apresentando O Chão de Graciliano, 2015, p.15
Aí estão os autores, o encontro e a proposta de O Chão de Graciliano.
Neste contexto de criação, a nossa pesquisa partiu das bases geneticistas e assumimos que “(…) a criação excede os limites da linearidade do código e se projeta em espaços múltiplos. O crítico genético lida, portanto, com a ausência de linearidade e a simultaneidade do processo.” (SALLES, 2008, p. 53-4). Assim, era necessário organizar o processo fotográfico para identificar os registros da criação nos diferentes suportes, os documentos de processo, a partir de entrevistas com o autor e análise detalhada do seu acervo, e foi o que fizemos criando o fotolivro Fotográficos DOCUMENTOS DO PROCESSO fotográfico, que será comentado no próximo capítulo.
Graciliano Ramos, 1940. Fundo documental do Correio da Manhã. Domínio Público, disponível na Wikimedia.
Pra finalizar, claro que você conhece, já leu ou já ouviu falar sobre Graciliano Ramos, um dos escritores mais importantes do Brasil. Aqui no site oficial dele você pode encontrar muita coisa referente à sua obra e à sua biografia, além de trechos de textos e trabalhos acadêmicos.
Auto-retrato aos 56 anos:
Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.
Casado duas vezes, tem sete filhos.
Altura 1,75.
Sapato n.º 41.
Colarinho n.º 39.
Prefere não andar.
Não gosta de vizinhos.
Detesta rádio, telefone e campainhas.
Tem horror às pessoas que falam alto.
Usa óculos. Meio calvo.
Não tem preferência por nenhuma comida.
Não gosta de frutas nem de doces.
Indiferente à música.
Sua leitura predileta: a Bíblia.
Escreveu “Caetés” com 34 anos de idade.
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.
Gosta de beber aguardente.
É ateu. Indiferente à Academia.
Odeia a burguesia. Adora crianças.
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
Gosta de palavrões escritos e falados.
Deseja a morte do capitalismo.
Escreveu seus livros pela manhã.
Fuma cigarros “Selma” (três maços por dia).
É inspetor de ensino, trabalha no “Correio do Manhã”.
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.
Só tem cinco ternos de roupa, estragados.
Refaz seus romances várias vezes.
Esteve preso duas vezes.
É-lhe indiferente estar preso ou solto.
Escreve à mão.
Seus maiores amigos: Capitão Lobo, Cubano, José Lins do Rego e José Olympio.
Tem poucas dívidas.
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas.
Espera morrer com 57 anos.
Autorretrato, por Graciliano Ramos
Já o texto seguinte, Linhas Tortas, foi discutido com os autores Audálio Dantas e Tiago Santana durante as entrevistas para este trabalho, e ambos não só concordaram com o Velho Graça, mas também relacionaram este “trabalho e retrabalho” com a labuta do fotógrafo, o que tem tudo a ver com… processo de criação!
Deve-se escrever da mesma maneira com que as lavadeiras lá de Alagoas fazem em seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.
Linhas Tortas, por Graciliano Ramos (1962)